segunda-feira, 4 de setembro de 2023

      


                                                             RACISMO CULTURAL* 

                                                                                


   Um soco na boca do estômago! Essa é a única e melhor forma de iniciar algum tipo de comentário sobre Olhos D'Água, de Conceição Evaristo. Uma coletânea de contos noir autenticamente brasileiros.

    Conceição Evaristo, de 74 anos, foi um dos vinte e sete nomes retirados da lista de Personalidades Negras da Fundação Palmares. A exoneração no catálogo de celebridades afro-brasileira relevantes para a cultura, democracia e desenvolvimento de nossa sociedade está diretamente ligada ao anarcocapitalismo com traços neofascistas desta autêntica aberração politica mumificada que é o Governo Bolsonaro. Entre outros nomes deletados da lista estão o senador Paulo Paim, Milton Nascimento, Gilberto Gil etc. Radiografar os motivos desta caça ultradireitista às bruxas seria um mergulho em questões políticas, econômicas e sociológicas que renderiam uma resenha à parte. 

    Por hora basta sabermos que o motivo de uma escritora tão talentosa e culta, além de romancista, contista e poetisa a autora de Olhos D'Água também é Mestra e Doutora em Literatura, ter sido suprimida da lista da Fundação Palmares é devido ao fato de que, desde 2018, o Brasil vem sendo desgovernado por um Executivo que é uma verdadeira gangue composta por milicianos, assassinos e charlatães da mais baixa estirpe disfarçados de políticos, militares patriotas e autoridades religiosas. Gente dessa laia só consegue manter-se no poder escamoteando e censurando qualquer tipo de manifestação contendo a mínima gota de desmistificação e revolta em relação ao status quo.vigente.

    E revolta e verdade é o que não faltam em Olhos D'Água. Elas pulsam como sangue febril a cada palavra redigida por Evaristo..

   Sempre centrado e protagonizado por brasileiras e brasileiros pertencentes à classe social mais baixa e marginalizadas de nossa sociedade, ou seja, afrodescendentes pobres, o livro abre com uma narrativa título explanada em 1ª pessoa por uma moradora de uma miserável e bárbara região de Minas Gerais que a autora nunca nomeia, mas que provavelmente é o Vale do Jequitinhonha. Um território com os menores índices de desenvolvimentos social do sudeste do Brasil e que guarda várias semelhanças com nosso nordeste, tanto em termos de características geográficas, quanto em relação à situação de miséria da população. 

   As memórias da protagonista são carregadas de poesia e virtuosismo narrativo para contar em detalhes o diai a dia de pessoas que crescem em meio às piores condições possíveis, Locais onde a Fome e o homicídio são coisas tão triviais no cotidiano quanto o ato de respirar. No entanto o texto rebuscado não amacia a dura realidade que descreve, pelo contrário. A composição lírica de Evaristo imprime uma ironia desconcertante às imagens de desolação e desespero tornando-as ainda mais cruas, viscerais, detalhadas.

   O resultado é o equivalente, no cinema, a assistirmos às arrebatadoras cenas de violência e sordidez  em câmera lenta magistralmente filmadas por estetas da violencia como Sam Peckimpah, Scorsese e John Woo.

  Em Ana Deravenga Evaristo troca a narração em 1º pessoa pelo narrador onisciente através de um ponto de vista bifurcado entre um traficante homicida e a esposa deste. Aqui a autora substitui um pouco o texto mais metafórico do conto anterior por uma estética mais seca,, direta, hard boiled . As frases são curtíssimas, james ellroynianas. Precisas como o tiro de um snipper tanto na descrição das cenas de ação, quanto nas platitudes do dia a dia para mostrar que a violência, quando não está explodindo, está sempre rondando por perto. A história de Ana Deravenga, mulher de bandido, e de seu amante sanguinário e perturbado nos é mostrada sem qualquer tipo de moralismo ou julgamento. A única lei é a lei da selvs e o verdadeiro vilão, mas também paradoxalmente nossa ínica forma de redenção, é a própria vida. Vida essa que estende seus tentáculos de destruição e sobrevivência desde regiões desoladas e aparentemente rurais: como no conto Olhos D'Água, até as entranhas transbordantes de sangue e caos da favela urbana de Ana Deravenga

  Resenahr todos os demais doze contos desta antologia seria enjoar o leitor com uma fila de elogios superlativos. Entretanto cinco deles merecem mais algumas observações em separado.

  Zaíta Esqueceu de Guardar os Briinquedos é a narrativa que leva o texto lírico-alucinante da autora ao limite. Aqui as feridas do gueto: tráfico de drogas, tiroteios e penúria são vistos e interpretados pelos olhos de uma criança, a menininha Zaíta do título.

  Esta opção narrativa de Evaristo faz com que truculência e massacres andem lado a lado com a inocência e a pureza. Felicidade X desgraça, bom senso X estupidez, sonho X pesadelo, esperança X niilismo, vida X morte. Todos eles caminham ambiguamente de braços entrelaçados podendo virar o ogo para qualquer um dos lados opostos em um piscar de olhos. Porém, todos os conceitos, sejam positoos ou negativos, possuem a mesma origem, pois todos nós já fomos crianças um dia.

  Este é um conto que a luta pela sobrevivência nos é apresentada de forma tão explícita e cruel que pode provocar nós nas gargantas atos leitores mãis empedernidos. Enquanto isso a pequena Zaíta chupa balas de açucar, foge das balas de fuzis e brinca nos becos das malocas encharcadas de dor e alegria pelo Brasil afora.

   Duzu-Querença dá voz ao segmento mais carente, frágil, marginalizado e ignorado, iinclusive pelas minorias, da sociedade: o (a) mendigo (a),

   Em poucos parágrafos, Evaristo consegue condensar toda a odisséia de devassidão e desventura da personagem-título.. De menina ingênua vinda do interior para a cidade grande com o pai em busca de uma vida melhor até seus dias de velhice e mendicância nas ruas implacáveis da metrópole. 

   A passagem de Duzu pelo puteiro onde cresce, trabalha, perde sua virgindade e inocencia é retratada em pormenores que só os grandes mestres do noir e das desgraças da vida: Hammett, David Goodis, Ellroy, Jack London, Bukowski, possuem a ousadia e o sangue frio necessários para descreverem.

   A exemplo dos contos anteriores aqui também não há espaço para qualquer tipo de pudor. O mix, que ocorre em alguns momentos, entre candura e sinceridades infantis com o horror do submundo é tão desconcertante quanto em Zaíta Esqueceu de Guardar os Brinquedos

   Maria éuma obra-prima de precisão, contundência e agressividade literárias. Em apenas três páginas são contadas duas histórias, uma encapsulada no interior da outra com total exatidão. Na primeira, mais intimista, uma empregada doméstica  relembra os bons e maus momentos de sua vida: a dureza da profissão, a gravidez, os filhos, sua solidão, os breves relacionamentos eamorosos..., enquanto reencontra em um õnibus o pai de seu primogênito e ex-marido. A existência agridoce de Maris é narrada no interior de uma trama eletrizante que tem a protagonista como foco principal e possui uma conclusão terrível. Maria combina a clareza e objetividade das (boas) colunas policiais com o ritmo explosivo e enxuto da literatura noir. Uma granada letal em forma de conto.

    Em Luamanda  Conceição Evaristo substitui as drogas, tiroteios e assassinatas das narrativass precedentes, pelo sexo, e pela paixão.

     Assim como a violencia o sexo é mostrado aqui sem nenhum acanhamento moralizador enquanto vai expondo todas as intimidades de alcova de uma mulher., desde seu defloramento, aos treze anos, até sua meia idade quando se torna uma senhora fogosa e com plenos domínios nas práticas de dar e receber prazer. Tuo o que pode vir a acontecer com uma mulher em termos de sexo durante sua vida é explorado aqui. A expectativa, medo e dor da primeira vez, ser dominada e dominar, homossexualidade, amantes bem mais novos e bem mais velhos, gravidez e o lado mais aterrador e soturno da sexualidade: o estupro.

    Tudo é narrado de forma vívida, sincera, explícita, excitante e terrível. Porém jamais vulgar ou estereotipado e o texto sempre carregado com um vigor poético denso e afiado.

    Quando Luamanda termina o leitor está tão empolgado e chocado como quando chegou ao final de Maria  Ana Davenga. Porque Evaristo nos ensina que sexo também é ação, tensaõ e adrenalina.

     Por fim, A Gente Combinamos de Não Morrer. Este penúltimo conto da antologia descreve o dia a dia alucinate de uma família pobre envolvida com o submundo do crime. Com narração múltipla em primeira pessoa, uma mãe e seus filhos, a trama jorra um festival de violencia, aventura, confrontos, assassinatos, armas pesadas, contravenções e sordidez de todos os tipos em uma prosa telegráfica, vídeo-clipada. Com tanta informação e intensidade concentradas que a história parece ir explodindo na cara do leitor à medida que as palavras vao sendo kidas, devoradas.

    A exemplo dos contos anteriores o espaço não é definido. Nem precisaria, pois a ambientação é tão intrinsecamente suburbana brasileira que dá voz a todas as vidas que gritam pela sobrevivencia diária nos guetos tupiniquins à margem da sociedade de norte a sul do país.


                                                    GENIALIDADE X PRECONCEITO

    Conceição Evaristo é apenas mais um dentre os vários grandes nomes de nossa literatura que são praticamente desconhecidos pelo grande público.

   Motivospara isso ocorrer no Brasil é o que não falta: descaso incisivo em realção à leitura, conhecimento e cultura de uma forma geral que vem contaminando nosso país há séculos,, economia frágil, e consequentementee, baixo poder aquisitivo da população, escolaridade capenga de milhares de brasileiros. Hoje, pleno Século XXI, ainda existem cerca de onze milhões de analfabetos no país, apesar dos vários avanços nesta área.

   Além de todos esses reveses que travam que podem travar a carreira de qualquer escritor brasileiro, Evaristo ainda tem que lidar com outro empecilho: o racismo.

   Ora hipocritamente velado, hora truculentamente explícito, o racismo sempre foi uma verdade axiomática no Brasil. Hoje se você o nega é porque deve pertencer as camadas mais bovinas do bolsonarismo.

   A ampla discussão sobre o branqueamento sofrido pelas imagens e representações póstumas de Machado de Assis já é histórica. Lima Barreto (1881-1922) só teve o brilhantismo furioso de seus contos e romances pré-modernistas reconhecidos trinta anos após sua morte. Imagine como teria sido a carreira de uma escritora como Carolina Maria de Jesus, que conseguiu redigir um dos maiores best sellers de nossa literatura em meio às mais terríveis condições sociais e com o mínimo de educação formal, se não tivesse nascido negra e passado a maior parte de sua vida lutando para poder sobreviver um dia após o outro.

  Conceição Evaristo, seu nome completo é Maria da Conceição Evaristo de Brito, nasceu em 1946 em Belo Horizonte, M.G., e teve mais sorte do que algunx de seus colegas de profissão, Lima Barreto e Carolina de Jesus, apesar de oriunda de família modesta. Evaristo contrariou todas as expectativas dos que veem uma mulher negra e pobre ser alvo certo para a desgraça e o ostracismo no Brasil. A mineira de um murro na cara dos conservadores evolutivos e no cinismo dos liberais ao se formar em Letras pela UFRJ. Em seguida ingressando na seletíssima, e alvíssima, elite intelectual tupiniquim quando se tornou Mestra em Literatura Brasileira, pela PUC do Rio de Janeiro, e Doutora, pela Universidade Federal Fluminense, em Literatura Comparada.

   Multifacetada nas artes da escrita, a autora de Olhos D' Água estreou nas Letrasa em 1990 por meio de um conto publicado na antologia Cadernos Negros . Uma série de vários volumes focada em literatura afro-brasileira e com a participação de diversos autores.

   De lá para cá essa msa do bele-horrível  e dos esquecidos pela sociedade já passou pelo conto, poema, novela e romance. Concorreu ao prestigioso Prêmio Jabuti e é reconhecida como um dos maiores nomes da literatura brasileira contemporânea..

   Olhos D'Água  é uma obra radical  que nem de longe foi feita para agradar a todos. Obviamente que o livro incomodará alguns devido as sua doses maciças de violência e sofrimento humano. Entretanto não são apenas os leitores de estômago fraco e imaginação sensível que se sentirão perturbados pelos contos de Evaristo, mas também, e principalmente, os reacionários e conservadores.

   Não é toda a sangreira que escorre das páginas do livro que iraá indispor os donos do poder e os lambe-botas da autocracia.. Mas sim a denúncia cabal de toda essa violência.

   Denúncia esta que éo cerne de  Olhos D'Água.

   É a  verdade pura, nua, crua, definitiva  exposta nas páginas de um "simples" livro que irá provocar náuseas e pesadelos em algumas pessoas. A prova disso é a citação da caça às bruxas que abre esta resenha.

   Visto por certo ângulo, a retirada do nome de Conceição Evaristo do registro de celebridades afro-brasileiras nem deve ser vista tanto espanto assim se levarmos em conta o atual zeitgeist da política brasileira. 

    Ele é a evidência categórica de que a autora de Olhos D'Água acertou seu alvo na mosca. 


    *Esta resenha foi digitada durante a gestão do Governo Bolsonaro.


                                                                               

Conceição Evaristo